terça-feira, 6 de setembro de 2011

Conhecimento amplo, geral e irrestrito

Ariadne Chloe Mary Furnival, ou professora Chloe, é inglesa e veio a primeira vez ao Brasil em 1993, após ter terminado um mestrado em computação, na Universidade de Manchester (University of Manchester), Grã-Bretanha. Chegando ao país, foi trabalhar na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) como professora de Ciência da Informação, dentro de uma proposta multidisciplinar, envolvendo Biblioteconomia e Engenharia. No Brasil, ela defendeu o doutorado doutorado em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas, em 2001. Seu interesse pelo tema do acesso aberto começou como pesquisadora usuária de artigos científicos. Trabalhou no Centre of Research Communications, da University Nottingham, em um projeto de Advocacy para o acesso aberto. "Meu trabalho era disseminar o modelo do acesso aberto entre os pesquisadores". Voltou ao Brasil e à UFSCar. Autora de uma série de livros e artigos, atualmente, Chloe trabalha em um projeto de repositório para a universidade, além de continuar com as aulas. Sobre a opinião de seus alunos com relação ao acesso aberto, a professora diz com orgulho "vejo que eles têm o valor de democratizar o acesso à informação".


O que é acesso aberto?

Chloe: Seguindo a definição de Peter Suber,  um dos mais importantes defensores do acesso aberto, trata-se de literatura digital disponível online, livre de cobrança financeira e livre da maior parte das restrições de copyright. O surgimento deste modelo foi possível graças à difusão da internet e ao movimento de autores que passaram a dar permissão para a reprodução de seus trabalhos. O acesso aberto está conectado à internet.


Quais são os princípios que fundamentam este modelo de difusão do conhecimento?

Chloe: O princípio fundamental é o da remoção de barreiras para o acesso ao conhecimento, além do consentimento do autor. A literatura oferecida em acesso aberto é livre para ser copiada, distribuída e utilizada, por exemplo, em sala de aula.


Quando se fala em acesso livre, a primeira coisa que vem à mente é artigo científico ou publicação científica. O acesso livre abrange outros campos? A digitalização de obras da literatura, por exemplo, traz em si o conceito de acesso livre?

Chloe: Esta é uma grande discussão que está começando. Os modelos de negócios das editoras são pouco flexíveis para desenvolver o acesso aberto. Existem alguns projetos de acesso aberto para a literatura, como, por exemplo, o projeto Gutenberg, nos Estados Unidos. Outra iniciativa norte-americana vem da Universidade de Pittsburgh que disponibiliza uma série de publicações, inclusive muitos estudos sobre a América Latina [University of Pittsburgh Press – Digital Editions]. Aqui no Brasil, a Unesp também lançou uma coleção digital de livros nas áreas de ciências sociais e humanas [Acervo Digital da Unesp]. Agora, iniciativas como essas por parte de editoras comerciais, eu não conheço. Mas, a filosofia do acesso aberto está se disseminando para outras áreas, além da literatura, como é o caso do Flickr, que oferece imagens com licenciamento CreativeCommons. Importante dizer que não estamos falando de pirataria; o uso dos trabalhos de acesso aberto implica citação da fonte.


Quando começou a se falar mais fortemente sobre acesso aberto no mundo? E no Brasil?

Chloe: No mundo, o acesso aberto começou a se configurar na década de 70, com o lançamento da internet. Quando idealizou a rede, Tim Berners-Lee, já falava de disponibilizar o conhecimento de forma livre. Acredito que um passo importante aconteceu, em 2002, com a Declaração de Budapeste [Budapest Open Access Initiative] que consolidou a organização de um modelo de acesso aberto às publicações científicas. E ainda, antes de Budapeste, tivemos a Declaração de Havana Rumo ao Acesso Equitativo à Informação em Saúde [2001], defendendo o acesso aberto às publicações da área da saúde.

No Brasil, a principal iniciativa de acesso aberto começou em 1997, com o surgimento do SciELO. Isso mostra que o país vem acompanhando as discussões e tomando iniciativas para a difusão deste modelo desde o início do movimento.


Quais os países mais avançados na implantação de um modelo de acesso aberto?

Chloe: O Brasil é um país bastante avançado nesse modelo, com aproximadamente 620 títulos de publicações científicas oferecidas em acesso aberto. Ele está em segundo lugar no mundo, atrás dos Estados Unidos, que têm cerca de 1.300 periódicos. Isso em termos de via dourada. Quando se trata da via verde, o Brasil detém apenas 60 repositórios. Já os Estados Unidos, também primeiro colocado neste sistema, contam com 20% dos repositórios mundiais, isso considerando os repositórios que contêm material em texto completo e não apenas metadados.


Os repositórios também são uma opção de modelo de acesso aberto. Como eles funcionam?

Chloe: Existem os repositórios disciplinares, divididos por campos da ciência, nos quais os pesquisadores compartilham os trabalhos antes deles serem publicados, facilitando a troca de informações entre os pares. O mais antigo e famoso é o arXiv, que dá continuidade à prática secular dos cientistas de disseminar os resultados de pesquisas entre os pares. Outro exemplo é o RePEc [Research Papers in Economics], da área de economia.  Há também os repositórios institucionais, mantidos pelas instituições de ensino. O repositório institucional é um instrumento administrativo para controlar os indicadores de produção científica e para a preservação de um acervo de artigos. Ele funciona também como uma vitrine do que está sendo produzido na universidade. É um tipo de marketing. Na Europa, um dos critérios utilizados pelos alunos de pós-graduação para a seleção da universidade é o seu repositório. 


As instituições que publicam periódicos científicos, públicas ou privadas, têm um claro entendimento do que significa acesso aberto? Há muita resistência em aceitar e implantar este modelo?

Chloe: A resistência que existe pode estar baseada na ignorância sobre os propósitos do acesso aberto, que não é derrubar as editoras, mas sim, oferecer uma alternativa de acesso ao conhecimento. Para quem não é da comunidade científica é muito difícil ter acesso à produção científica. Pequenas e médias empresas, por exemplo, que queiram investir em inovação, não têm acesso à literatura científica. Isso sem falar no público leigo que dificilmente pode acessar o conhecimento produzido em ciência sem a mediação de um jornalista. O acesso aberto não concorre com a revista de assinatura, e muitas editoras já entenderam isso, quando, por exemplo, permitem ou incentivam o auto depósito. Existe ainda um outro movimento por parte das universidades incentivando seus pesquisadores a negociar direitos com as editoras, pelo instrumento author addendum, um documento que permite ao autor manter certos direitos sobre o artigo. Outra iniciativa é o open access mandate, um instrumento de fomento à pesquisa que exige que os autores publiquem seus artigos em revistas de acesso aberto.


E entre os pesquisadores, a aceitação é plena ou há aqueles que acreditam que não é correto abrir para o mundo o fruto do trabalho de anos de pesquisa?

Chloe: A maior resistência por parte dos pesquisadores é com relação à abertura dos dados, o que, intuitivamente, é compreensível, porque, afinal de contas, eles trabalham duro para obtê-los. Com relação aos artigos, não vejo resistência. Aliás, seria até um contrassenso, considerando que  a base do conhecimento científico é a discussão na esfera pública. No entanto, eu vi pesquisas recentes que mostram que o pesquisador é favorável ao acesso aberto, mas, esta disposição ainda não está sendo totalmente traduzida em ação. Os estudiosos continuam publicando em revistas fechadas e acredito que isso tenha a ver com o fator de impacto destas publicações. Em geral, periódicos com assinatura são mais prestigiados. Talvez ainda haja receios com relação ao copyright, por desconhecimento da política autoral do modelo de acesso aberto. Agora, vale pensar que quando um pesquisador publica seu trabalho em uma revista fechada ele passa todos os direitos de autor para a editora e depois não pode utilizar livremente seu próprio artigo.

Os defensores do acesso aberto afirmam que o modelo aumenta a visibilidade dos artigos e, consequentemente, seu impacto. Existem estatísticas que comprovem isso, no Brasil ou em outros países?

Chloe: Não há dúvidas de que fazer o download do artigo gratuitamente aumenta sua exposição, é a chamada open acess citation advantage (OACA).  Agora, existe uma dificuldade de comprovar o fator de impacto. O projeto OpCit traz uma interessante bibliografia sobre como medir o fator de impacto no modelo de acesso aberto.


Existem questões éticas envolvidas com o modelo de acesso aberto? Quais seriam?

Chloe: Do ponto de vista da ética científica, o medo de plágio de artigos é infundado, porque, com o acesso aberto fica mais fácil descobrir o plágio, uma vez que todos sabem o que está sendo produzido e por quem. Mas, para mim, a principal questão ética que envolve o acesso aberto está no uso da verba pública para financiar e publicar pesquisas e no uso da estrutura das universidades públicas para produzir pesquisas, e o leitor, leigo ou pesquisador, ter que pagar por uma assinatura de revista. Isso não é correto. O cidadão, leigo ou cientista, que paga impostos tem o direito a ter acesso ao conhecimento científico financiado com seu dinheiro. É um valor democrático.


Está em andamento na internet um abaixo-assinado em defesa do projeto de lei 387/2011, que prevê a criação de repositórios institucionais de livre acesso nas universidades brasileiras e torna obrigatório que os pesquisadores disponibilizem sua produção, publicada em revistas científicas, nestes repositórios. Você tem conhecimento deste projeto? Ele vem ajudar a "causa" do acesso aberto?

Chloe: Conheço o projeto e inclusive assinei o abaixo-assinado. Eu tiro o meu chapéu para a iniciativa. O instrumento do mandato é delicado, mas é bom. O projeto trará mais transparência para a produção científica, com a instituição dos repositórios, e o público poderá saber mais sobre como o dinheiro dele está sendo investido.

4 comentários:

  1. Faltou na discussão falar sobre quem financia a publicação de artigos em acesso aberto. O custo para o autor fica, hoje, entre 1500 e 5000 dólares. As agências de fomento no Brasil não têm reserva para financiar artigos publicados oriundos dos projetos que financiam.

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  2. Bom dia, Aluisio. Muito bem colocado; encaminhei a questão para a Profa. Chloe. Vamos ver o que ela pode lhe dizer sobre o financiamento. Saudações, Débora

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  3. Bom dia, Aluisio
    Muito obrigada pelo comentário. Sim, já fiquei sabendo que as agências de fomento à pesquisa aqui no Brasil ainda não têm essa reserva para financiar o pagamento da publicação de artigos em revistas científicas. No entanto, hoje existem muitas revistas em AA (open access journals) de altíssima qualidade que não cobram taxas de publicação dos autores; e também existem editoras em AA que, em certas situações (p.ex. se o autor não tem apoio financeiro para a publicação), dispensam com as suas taxas de publicação ("publication fee waivers") p.ex. a PLos e a BMC. Para aqueles autores que publicam em revistas "tradicionais" (ou seja, fechadas e pagas por assinaturas), ainda existe a opção de depositar uma cópia do artigo publicado num repositório (da sua instituição ou em um dos muitos disciplinares que existem), assim garantindo o acesso aberto ao artigo. Grande parte dessas Editoras "tradicionais" permitem tal auto-arquivamento/auto-depósito, às vezes com um periodo de "embargo" de em torno de 6 meses. A base de dados RoMEO (http://www.sherpa.ac.uk/romeo/) lista grande parte destas políticas de copyright e auto-arquivamento das principais Editoras, e inclusive foi traduzida para o português. Mas penso que a questão de um fundo de taxas para a publicação em AA, tanto nos órgãos de fomento quanto nas univeridades, terá que ser discutido em paralelo às discussões sobre políticas e procedimentos de repositórios. Pois se as universidades brasileiras priorizam a instituição dos seus repositórios e a promoção da população dos mesmos, então o AA a todas as publicações dos seus pesquisadores será garantido.

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  4. Muito boa a entrevista! Instigante e esclarecedora. Gostei muito e vou compartilhar. Abraços, Lílian

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